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Exilados sobre as cinzas

Com o título “Exilados sobre as cinzas”, eis a crônica da professora da Universidade Federal do Ceará, Juliana Diniz, sobre o incêndio ocorrido no Museu Nacional do Rio de Janeiro no último domingo, 02.

“As damas arderam em meio ao fogo como bruxas queimadas pelo Santo Ofício.

Quis o destino que fosse no domingo, dia grave e santo, e à noite, para que as labaredas iluminassem as sombras e as caras de espanto.

Consumiu-se tudo.

Amanheceram as cinzas ainda aquecidas, a fuligem turvando o ar em suspenso. As paredes tisnadas de preto erguem-se para o céu como braços desesperados em prece, mas Deus está silente. Também o registro de suas múltiplas vozes se perdeu no fogo. O palácio do império é um esqueleto esquálido, não sustenta um teto ou guarda qualquer tesouro, suas paredes desnudas apenas demarcam vãos recobertos por escombros, as entranhas expostas ao ar livre.

O inferno é um lugar silencioso, onde não há alternativas ou esperança.

Pelo chão, restos de múmias egípcias se ornamentam com o pó de borboletas tropicais que já não existem sequer como lembrança de cor. Um meteorito repousa intacto em meio ao caos de ossos de bichos imensos. Às pedras caídas do espaço não importa a iminência do fim, porque são seres concebidos do nada e à revelia do tempo. Matéria alheia à linguagem e aos homens.

Não há tempo para luto. Iniciam-se os trabalhos de inventariar as perdas de um povo condenado a viver como exilado na própria terra. Terra de seres nus, sem memória ou caminho que conduza à sua ancestralidade incinerada. Incapazes de reconhecer qualquer lembrança na geografia dos seus gestos, suas práticas, imperfeições ou cores. Terra de bichos sem história, os analfabetos de seu destino”.

Juliana Diniz

(Foto: Carl de Souza)

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