Em 20 anos, a taxa anual de aborto nas regiões desenvolvidas caiu, principalmente em países onde a prática foi legalizada. O mesmo não ocorreu na América Latina. Uma das principais defensoras da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, Debora teve que sair do Brasil devido a ameaças de morte, e explica porque o país não conseguiu acompanhar esse movimento.
Em 2004, você trouxe à luz uma questão de direitos reprodutivos praticamente desconhecida por quem jamais viveu o drama de gestar um feto sem cérebro: o aborto de anencéfalos. Em 2012 então esse tipo de aborto deixou de ser considerado crime, por decisão do STF. Gostaria que você contasse um pouco de onde vem a sua ligação/identificação com essa temática dos direitos reprodutivos e aborto? Essa é a vida concreta das mulheres, especialmente na sua juventude, na idade reprodutiva. Quandofalamos que pelo menos uma em cada cinco mulheres no Brasil já fez um aborto, segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto, estamos falando de meio milhão de mulheres todos os anos. Estamos falando de alguma mulher que nós conhecemos na vida. Não tenho nenhuma história pessoal de aborto. Minha proximidade com o tema vem da minha atuação como pesquisadora, na qual exercito a capacidade de escuta, de sensibilidade, de nos aproximarmos do que é a dor da outra, e de quais são as forças que cada uma tem para implementar a mudança.
Você foi a autora do primeiro livro sobre a descoberta da zika no Brasil – venceu a categoria ciências da saúde do Prêmio Jabuti com “Zika: do sertão nordestino à ameaça global” – e nos últimos anos se tornou figura central pelo direito ao aborto até a 12ª semana de gestação. Na sua opinião, quais as principais dificuldades para que o tema avance na legislação brasileira? A principal dificuldade é que o aborto é um tema usado como uma moeda de troca, como uma questão sensível para provocações políticas. Com a emergência do governo Bolsonaro e de todo um campo conservador e autoritário no país, as questões de gêneroe as questões reprodutivas vão ao centro de uma controvérsia moral, que se torna uma controvérsia política. Não diria que a principal dificuldade para o avanço do tema são as igrejas ou as crenças religiosas, mas sim o uso de uma autoridade moral para perseguir mulheres, para controlar o campo reprodutivo. Ao se controlar a questão do aborto, controla-se a concepção de família, de reprodução social, de mulheres no mundo do trabalho, de direitos a creches, de cuidados com as crianças, de acesso aos métodos anticoncepcionais. É um erro colocar o aborto numa uma polarização sobre o campo religioso.
O que aconteceu após a legalização do aborto em países como Portugal, Espanha e Uruguai? A descriminalização do aborto leva a uma redução das taxas dessa prática, porque a descriminalização abre caminhos para um pacote de medidas de acesso à informação, de quebra dos estigmas e do tabu. As mulheres passam a falar a verdade quando chegam em um serviço de saúde, porque não têm mais medo de serem denunciadas. Com isso, é possível saber se ela sofre violência, se ela não está usando bem o método contraceptivo, e intervir para prevenir uma gestação indesejada. A descriminalização reduz o número de abortos. A criminalização não apenas não soluciona, como mantém as mulheres em risco de saúde e de serem presas.
Em 20 anos, entre 1990/1994 e 2010/2014, a taxa anual de aborto nas regiões desenvolvidas caiu significativamente, principalmente em países ricos onde a prática é legalizada. O mesmo não ocorreu em países em desenvolvimento. Porque que a América Latina e o Brasil não conseguiram acompanhar o movimento de legalização do aborto no mundo? O Brasil está na região do mundo em que o aborto é mais criminalizado, e que tem as maiores taxas de aborto: a América Latina e o Caribe. A situação da região nesse campo não decorre apenas da interferência de uma moral religiosa, mas da composição de uma colonialidade patriarcal, que é masculina, e dedicada ao controle da ideia de família e das mulheres. A América Latina e o Caribe também é a região do mundo que mais mata mulheres. A criminalização do aborto e o feminicídio são fenômenos que não devem estar separados: controlar a reprodução e controlar o corpo das mulheres também inclui matar as mulheres. A região é marcada pelacultura patriarcal e pela desigualdade de gênero, que fazem com que nós não acompanhamos a secularização do Estado ea despatriarcalização sobre o aborto que pode ser observada em outros lugares.
Apesar dos extensos debates já travados, a ação pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação ainda não tem data para ser votada no STF. Você acredita em uma perspectiva de retomada? Não sou capaz de fazer nenhuma projeção, mas acredito que é uma prioridade para o Estado. Para algumas pessoas pode parecer que não seja, mas eu continuo dizendo que, mais do que nunca, essa é uma prioridade democrática para a corte suprema no Brasil. São direitos individuais violados. Todas as Cortes, como qualquer outra organização, estão imersas de uma cultura política, e pode haver uma falsa avaliação de que esse é uma tema intenso demais ou político demais para ser resolvido nesse momento. Eu diria que, exatamente por estarmos nesse momento, a ação deveria ser julgada procedente e levar a uma leitura do Código Penal à luz da Constituição. Momentos de crise são momentos de reafirmação dos direitos, de mostrar que violação de direitos fundamentais não será autorizada.
Boa parte das entidades que vão se manifestar contra a sua proposta de descriminalização do aborto é ligada a igrejas. Que peso que esse setor tem? A mulher que faz aborto é uma mulher comum. Ela tem religião, tem filhos, tem um companheiro. Uma em cada cinco mulheres brasileiras já fez um aborto: é como se você visse na rua cinco mulheres entre 18 e 39 anos, e soubesse que uma delas fez aborto. Aí você imagina: será que essa mulher deveria estar presa? Ser favorável ou contrário ao aborto é um falso enquadramento. Se o aborto é uma necessidade da vida e de saúde das mulheres, ser “contra” o aborto significa apenas ser favorável a colocar mulheres que abortam na prisão. As entidades que se manifestam contrárias à descriminalização do aborto no STF são falam em nome de organizações religiosas, porque essa é uma autoridade reconhecida dentro de uma frágil laicidade da democracia brasileira. Essas entidades representam essa tradição patriarcal de controle das mulheres. e reproduzem desigualdade de gênero, , mas não apenas elas. Instituições religiosas são porta-vozes, são a materialização de uma estrutura hierárquica e patriarcal que acredita que as mulheres devem se manter grávidas e exercer a maternidade mesmo contra sua vontade, a ponto de mandá-las para a cadeia se não o fizerem.
No Twitter você está sempre bem atuante. Você acredita numa retomada da ciência e da educação brasileira? Eu jamais acreditei que a universidade e a ciência se mantiveram inativos em todo esse processo como esse novo governo. Então a entendo que retomada se refere a uma pergunta sob o ponto de vista de um estado formal de políticas públicas, e nesse sentido não acho que acontecerá sob esse governo. Uma das estratégias do governo Bolsonaro é uma ofensiva e tentativa de desestabilização das universidades e da ciência, porque ele opera pela mentira e pelo medo, e a ciência é o espaço da disputa genuína pelas melhores afirmações sobre verdades, sobre respostas obtidas por métodos transparentes e abertos ao debate público. Esse governo não só não está aberto ao debate público como não está aberto a seguir as regras de construção de verdade, por isso que opera pela disseminação do medo como uma forma de controle social e político.
Nos últimos anos, a burocracia na ciência e o radicalismo tem provocado uma fuga de cérebros no Brasil. Você foi uma das pesquisadoras que, em 2018, saiu do país devido à ameaças de morte. Atualmente, mora nos Estados Unidos e é pesquisadora do centro de estudos Latino-Americanos e Caribenhos na Brown University. Você ainda espera poder voltar logo a Brasília para retomar a rotina na universidade? Sim. O meu caso é temporário. Eu não me enquadraria como uma fuga de cérebro. Minha história de saída do país é decorrente de um dever de responsabilidade comigo mesma e com as pessoas das quais tenho que cuidar com professora. Me afastei da universidade pelas ameaças que sofri, ameaças graves contra mim, contra a universidade, contra os alunos e meus colegas. Ameaças assim são uma estratégia da milícia digital para forçar uma fuga de cérebros, porque as universidades são espaços de contestação, de resistência e de afirmação do debate público.
As redes sociais permitem a construção da participação política mesmo com a operação de expulsão dos indivíduos pela imposição da ameaça e do medo. É por isso que entrei no Twitter e no Instagram depois de sair do país. É também por isso que movi uma ação contra o Ministro da Educação, pedindo que me desbloqueie no Twitter.Sempre sou respeitosa nas conversas e, como qualquer cidadã, tenho direito à participação política. Um representante do Estado tem direito de ter as suas redes sociais de uso privado, mas se ele fala de políticas públicas ou de questões do exercício do cargo, já não é uso privado. Me mantenho ativa no campo da política mesmo estando fora do país, e isso não era possível há 20 anos. Governos autoritários promoviam um silenciamento com a fuga de cérebros forçada, mas agora há outras formas de participação política. Com a possibilidade de interação digital, me mantenho tão ou mais ativa do que era enquanto estava aí.
Diante dessas ameaças advogados criam uma rede em sua defesa e estudam oferecer apoio jurídico gratuito a outros ameaçados. Como você avalia toda essa situação extrema na qual cientistas brasileiros estão passando? Você atribui isso a que? É uma estratégia autoritária, porque a ciência não pode ser tomada por um conjunto de fake news ou de grupos do WhatsApp, como o presidente Bolsonaro tentou fazer recentemente com a ameaça ao Congresso Nacional. A ciência são humanos, a ciência é o espaço do exercício da dúvida. Na vida acadêmica, valem as regras do que nós chamamos um debate razoável, então o processo é muito mais lento. Por isso é que operar pelo medo e pela intimidação é a estratégia do autoritarismo.
Como você acredita que será o papel do Judiciário para a manutenção dos direitos civis? E dos direitos de mulheres? Eu tenho profunda esperança sobre a independência do Judiciário nesse momento, não só pelo direito das mulheres e de outras minorias, mas para uma contraposição a abusos do Executivo. O Judiciário tem que se manter como um poder independente, especialmente a Corte Suprema, que tem a responsabilidade de proteção, promoção e defesa da Constituição. Minha atuação no campo do litígio estratégico é não só por eu acreditar que o espaço da Corte é um espaço correto e legítimo para a proteção dos direitos individuais violados, mas também o contrapeso porque faz parte do político, especialmente nos governos autoritários.
Repórter Ceará – O Tempo (Foto: arquivo pessoal)