Um acampamento com gente de todo o País. Três refeições por dia e um centro de saúde. Quatro mil pessoas e trezentos veículos naquela noite de sábado. Ninguém monta um circo assim sem dinheiro e coordenação.
Os acampados cometiam a ilegalidade flagrante de conclamar o Quartel General do Exército a uma intervenção sem termos nos poderes republicanos. Ditadura mesmo, esse era o plano.
Sob alegação de que a polícia do Exército teria autonomia sobre a área circundante ao quartel, o comando militar negou autorização para uma ação de força que retirasse os celebrados de sua porta.
A tolerância com o acampamento deixa claro: os militares flertaram com o golpe e oficiais de alta patente foram além, atuando clandestinamente para fortalecer a resistência e promover desordem.
A polícia do Exército não apenas protegeu os acampados: se omitiu também em algo mais grave, a invasão do lugar onde despacha o presidente da República, um palácio sob sua proteção.
O pior legado do governo Bolsonaro – à parte o funeral planejado de 700 mil brasileiros na epidemia – foi devolver aos militares papel ativo na política, missão institucional exclusiva do poder civil.
37 anos depois de devolver ao povo a prerrogativa ampla de eleger seus representantes, os fardados mostraram que sua aspiração de impor termos à democracia era brasa adormecida.
Entendo que o presidente age bem em sua prudência de não incriminar a instituição Forças Armadas, sem, contudo, abrir mão de que militares envolvidos no 8/1 respondam pelos seus atos.
Mas Lula sabe, tanto quanto você e eu sabemos, que o comando das forças se posicionou em seu silêncio para que pudesse, em algum momento, ser caudatário de um golpe de estado, caso a desordem generalizasse.
Observe que em momento algum as forças armadas emitiram um sinal insofismável de seu compromisso de Estado, alienado de ingerência no espaço político, por lei reservado aos civis.
O estrago está feito e ainda levará tempo até que seja reparado. Com Bolsonaro na presidência, retrocedemos a paradigmas da Guerra Fria, numa nostalgia macabra e injustificada.
Ricardo Alcântara
Escritor e publicitário
Foto: Gabriela Biló/Folhapress