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Do terreiro ao posto de saúde: por que o Ceará é o berço vivo da Atenção Primária que inspirou o SUS, e o que falta para preservar esse legado?

O Ceará ainda mantém protagonismo em programas de qualificação da atenção primária, como iniciativas recentes de formação continuada e integração das redes de atenção, o que mantém vivo e ativo o legado. Entretanto, há riscos concretos que ameaçam esse patrimônio

Foto: Fabiane de Paula/SVM

O Ceará não foi apenas palco de políticas públicas, mas laboratório e propulsor de ideias que se tornaram fundamentais para o Sistema Único de Saúde. A prática pioneira dos agentes comunitários de saúde, aliada a pesquisas locais e a políticas de gestão inovadoras, transformou rotinas de cuidado e impulsionou a criação de modelos nacionais como o Programa Saúde da Família, hoje Estratégia Saúde da Família. Mas, passado o tempo de glórias, o modelo enfrenta desafios operacionais, financeiros e de modernização que ameaçam tornar o berço apenas memória.

Nas décadas de 1980 e 1990, o Ceará sistematizou experiências de atuação comunitária que antecederam e inspiraram políticas nacionais. A utilização de moradores treinados para atuar como ponte entre serviços e territórios, os agentes comunitários de saúde, foi institucionalizada cedo no estado e estudada em avaliações locais que demonstraram impacto direto na redução da mortalidade infantil e na ampliação da cobertura vacinal. Essa prática cearense tornou-se referência para o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e, mais tarde, para o Programa Saúde da Família, que até hoje é a espinha dorsal da atenção básica no Brasil.

O modelo cearense funcionou por três motivos principais. A territorialização e o vínculo fizeram diferença, pois os agentes eram moradores das próprias comunidades, o que lhes dava legitimidade e permitia visitas domiciliares regulares, vínculo e identificação precoce de riscos. A pesquisa local foi tratada como base, com estudos como as Pesquisas de Saúde Materno-Infantil do Ceará (PESMIC) que produziram dados robustos sobre mortalidade, nutrição e condições sanitárias, fundamentando intervenções e servindo de modelo metodológico para o país. Por fim, a gestão e a pilotagem estadual tiveram papel decisivo, já que secretarias de saúde e sanitaristas cearenses testaram arranjos de gestão, capacitação e protocolos antes que o Ministério da Saúde os institucionalizasse em âmbito nacional.

Em 1994, o governo federal oficializou o Programa Saúde da Família, hoje Estratégia Saúde da Família. Seus pilares, como equipes multiprofissionais, territorialização, prevenção e acompanhamento de famílias, nasceram de práticas consolidadas no Ceará. O estado foi, em termos técnicos e políticos, um verdadeiro campo de provas para o SUS.

O Ceará ainda mantém protagonismo em programas de qualificação da atenção primária, como iniciativas recentes de formação continuada e integração das redes de atenção, o que mantém vivo e ativo o legado. Entretanto, há riscos concretos que ameaçam esse patrimônio: a precarização dos vínculos trabalhistas de agentes comunitários em vários municípios, a dificuldade de financiamento estável, a sobrecarga das equipes em áreas urbanas e rurais e as lacunas de integração com serviços especializados. Sem políticas de valorização e atualização, a inovação que transformou o Brasil pode se perder.

Mais do que celebrar a história, o momento exige investigação e atualização. A imprensa cearense pode abrir espaço para agendas fundamentais, como a análise das condições de trabalho dos agentes comunitários, o acompanhamento rigoroso dos programas atuais de qualificação da atenção primária, a coleta de dados atualizados sobre saúde materno-infantil e vacinação — em uma espécie de nova PESMIC — e, finalmente, o resgate da memória viva por meio de entrevistas com sanitaristas, ex-secretários e protagonistas locais que ajudaram a criar esse modelo.

Há uma máquina silenciosa que, desde os anos 1980, costura a saúde das comunidades no Ceará: os agentes de saúde e o arcabouço técnico que os formou. Mais do que nostalgia, trata-se de um conjunto de práticas e evidências que orientaram o SUS. Hoje, a questão é clara: o Ceará seguirá sendo protagonista da Atenção Primária ou se limitará a lembrar o que já fez? O berço da atenção básica brasileira não pode ser apenas memória. Precisa ser, novamente, farol.

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