Lançado em setembro de 2025, o Podcast Perdigoto vem se consolidando como uma das mais ambiciosas iniciativas de registro, reflexão crítica e difusão do teatro brasileiro contemporâneo. Idealizado, roteirizado e apresentado pelos atores Aury Porto e Leonardo Ventura, o projeto aposta na escuta profunda e no pensamento coletivo para revelar a diversidade das artes cênicas no país, rompendo com a centralidade histórica do eixo Rio–São Paulo e dando visibilidade a artistas, grupos e territórios frequentemente apagados da historiografia oficial.
Resultado de um processo de pesquisa desenvolvido ao longo de dez meses, o Perdigoto integra a residência artística da mundana companhia no Instituto Capobianco, em São Paulo. Nesse período, foram realizadas 53 entrevistas, reunindo 55 convidados de 17 estados brasileiros e do Distrito Federal, o que gerou cerca de 165 horas de gravações. O material foi organizado em 25 episódios, com aproximadamente 50 minutos cada, disponibilizados semanalmente, sempre às quartas-feiras, reforçando o caráter contínuo e processual do projeto.
A motivação inicial remonta ao período da pandemia, quando Aury Porto percebeu a ausência quase total do teatro brasileiro no universo dos podcasts. “Mas o que me pegava agora, mesmo, era essa ausência do teatro, das informações sobre o nosso universo, nesse mundo de comunicação tão vivo dos podcasts que tomou conta do Brasil um pouco antes da pandemia”, afirma o ator. A partir desse incômodo, surgiu a necessidade de criar um espaço de fala e escuta dedicado às artes da cena.
Para dividir a condução do projeto, Aury convidou Leonardo Ventura, que se tornou parceiro fundamental na construção do Perdigoto. Descrito por Aury como um “bom perguntador”, Leonardo contribui para o rigor e a fluidez do formato, que se estabelece como um híbrido entre entrevista e documentário narrativo. “É um aprendizado técnico enorme, aprender a fazer roteiro de podcast dessa qualidade, que é um misto entre entrevista e podcast narrativo. É desafiador e muito trabalhoso”, explica Aury.
A curadoria ficou a cargo do professor e pesquisador Alexandre Mate e da atriz, diretora e professora Wlad Lima, escolhidos por sua atuação consistente fora do eixo hegemônico e pela capacidade de articular diferentes territórios culturais. Essa escolha dialoga diretamente com o propósito do Perdigoto: ouvir o teatro onde ele acontece — nas cidades, nos grupos, nas periferias, nas zonas rurais e nos espaços de resistência cultural.
Organizado em cinco eixos temáticos — História/Memória, Formação, Teatro de Grupo, Políticas e Diversidades —, o podcast percorre um vasto conjunto de experiências. O episódio de estreia, “As Vozes Insurgentes na História do Teatro Brasileiro”, funciona como um manifesto do projeto. Nele, Alexandre Mate, Valéria Andrade e Álvaro Assad discutem o apagamento histórico de artistas e linguagens populares, questionam a noção de um “primeiro ator brasileiro” e defendem a palavra como instrumento de justiça e reparação simbólica.
No segundo episódio, o foco recai sobre a preservação material e imaterial da memória teatral, a partir das experiências de dois grupos que mantêm espaços museológicos e acervos vivos. Participam Marcos Malafaia, do Grupo Giramundo (Belo Horizonte), e Lindolfo Amaral, um dos fundadores do Grupo Imbuaça (Aracaju), refletindo sobre a relação entre objetos, bonecos, arquivos e a prática sensível do teatro.
O terceiro episódio aborda duas formas musicais e dramáticas fundamentais na história do teatro brasileiro: o teatro de revista, com suas origens, influências e articulações entre música, sátira e narrativa, e o drama praticado no interior do Ceará, tradição majoritariamente feminina que preserva saberes e histórias transmitidas de geração em geração. Embora distintas em forma e contexto, as duas manifestações revelam diálogos profundos e a riqueza desse gênero no Brasil.
A discussão sobre formação teatral aparece em episódios que colocam em contraste diferentes modelos pedagógicos. Em um deles, o podcast reúne Tânia Farias, atuadora da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, e Cláudio Cajaíba, diretor e professor titular da Escola de Teatro da UFBA, para discutir as convergências e divergências entre cursos livres, vinculados à pesquisa de grupo, e a formação universitária institucionalizada.
O diálogo entre gerações marca o episódio com Amir Haddad, ator, diretor e fundador do grupo Tá na Rua, com mais de 70 anos de carreira, e Maria Thaís, diretora e pedagoga radicada em São Paulo. Apesar das diferenças de trajetória, ambos convergem na defesa de uma pedagogia indissociável da criação, na figura do artista-cidadão e na recusa de uma perspectiva burguesa como base da prática teatral.
O Perdigoto também percorre a história do teatro de grupo e das tradições populares, ouvindo nomes como Tácito Borralho, criador do Laborarte e da Coteatro no Maranhão, e Leidson Ferraz, pesquisador que traça um panorama dos grupos teatrais do Recife ligados às tradições populares e aos movimentos sociais, a partir da influência de Hermilo Borba Filho.
A relação entre academia e criação artística é debatida a partir das experiências de Cibele Forjaz (São Paulo) e Gisele Vasconcelos (São Luís), que analisam ganhos, perdas, burocracias e tensões entre o regramento acadêmico e a liberdade criativa. Já a busca por metodologias não eurocentradas de treinamento aparece nas pesquisas de Lauande Aires, a partir do Bumba Meu Boi, e de Monilson Mony, em torno do Nego Fugido, evidenciando a potência das manifestações dramáticas populares.
O teatro de rua ganha um episódio dedicado ao seu percurso histórico no Brasil, articulado às experiências do Grupo Ruante (Porto Velho, RO) e do Grupo Teatro Revirado (Criciúma, SC). Em outro momento, o podcast analisa os caminhos de criação e permanência de grupos nordestinos como o Clowns de Shakespeare (RN) e o Jucá de Teatro (CE), mesmo diante da precariedade e da ausência de apoio institucional.
Territórios em conflito também entram em pauta, a partir das falas de Fernando Cruz, do Teatro Imaginário Maracangalha (Campo Grande, MS), e Thiago Reis Vasconcelos, da Cia Antropofágica, que atua em ocupações na região metropolitana de São Paulo, onde a prática teatral convive com violência, tensão e resistência.
Outros episódios trazem experiências singulares, como a de Iracema Oliveira, que dedica a vida ao Teatro de Pássaros, gênero existente apenas no Pará, e Wyller Villacas, que se inspira nos brincantes de Congo do Espírito Santo para criar espetáculos de rua. O podcast ainda aborda fenômenos como o teatro de porão em Belém, analisado por Olinda Charone, e o Teatro de Contêiner, em São Paulo, apresentado por Marcos Felipe, refletindo sobre os “subterrâneos das cidades”.
As políticas de financiamento teatral são examinadas em um panorama histórico que vai do TBC aos CPCs, do Teatro de Arena ao grupo Opinião, passando pelo movimento Arte contra a Barbárie, a Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo e as políticas culturais na Paraíba e na esfera federal. A descentralização cultural aparece nas falas de Lela do Cerrado, no Distrito Federal, e Cleber Ferreira, no Amazonas, que apresenta o conceito do “Fator Amazônico”.
Encerrando o percurso, o podcast reflete sobre o investimento pessoal na produção e preservação de bens artísticos, ouvindo Dane de Jade, a partir de sua trajetória no sertão cearense, e Roberto Capobianco, em São Paulo, evidenciando o esforço individual como estratégia de permanência cultural.
Com trilha sonora de Ivan Garro, produção de Nana Yazbek e identidade visual de Mariano Mattos Martins, o Perdigoto se afirma como mais que um podcast: é um gesto teatral de escuta e partilha. “O nosso público-alvo principal é a própria gente de teatro”, resume Aury Porto. “Quem está se formando, quem já se formou, professores e alunos, velhos e novos. A gente quer dividir isso com todo mundo do teatro”.
Realizado pela mundana companhia, em parceria com o Instituto Capobianco, o Podcast Perdigoto se consolida como um documento vivo do presente, reafirmando, em múltiplas vozes, que o teatro brasileiro é vasto, diverso e profundamente plural — e que toda quarta-feira há um novo episódio no ar.
