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Obrigado

Com o título “Obrigado”, eis o artigo de Sofia Mariutti, poeta e tradutora, publicado no Nexo Jornal.

Antes de ser usado como interjeição, “obrigado” é adjetivo, que indica obrigação ou força das circunstâncias. Somos obrigados a votar, e depois somos obrigados a engolir o resultado das eleições. No livro “Viva a língua brasileira”, Sérgio Rodrigues nota um erro corrente, que pode ser uma mutação linguística em curso: o adjetivo “obrigado” estaria perdendo a flexão de gênero e número quando usado como interjeição, e as mulheres estariam deixando de dizer “obrigada”. Será?

O fato é que quando agradecemos, em português, nos colocamos em lugar de dívida. Se te digo “obrigada”, no fundo estou dizendo que sou obrigada a você, me sujeito às suas condições, ofereço-me em sacrifício. Há até uma expressão própria para o dever moral que temos de cumprir quando recebemos um favor de alguém: “dívida de gratidão”. Mas nem sempre o outro lado espera alguma coisa de volta: “Obrigado por tudo quanto/ Você me fez por nada”.

Antes do obrigado vem o “por favor”. Depois do obrigado vem o “de nada”. “Obrigado você” não faz sentido, a não ser que se queira reforçar o já dito e criar uma dívida ainda maior a quem agradeceu: “você me deve mesmo uma”. Para preservar a cordialidade, melhor seria “obrigado eu”, “eu que agradeço”, ou “obrigado a você”.

Obrigado ao cosmos é “gratiluz”. Obrigado entre irmãos é “valeuzão”. Quando alguém te oferece alguma coisa, “obrigado” pode ser sim e pode ser não — muitas vezes não fica tão claro, e você acaba tendo que comer aquele bolo que não queria.

Muitos acham que o japonês “arigatô” vem do nosso “obrigado”, mas não há comprovação, embora os japoneses tenham de fato herdado muitas palavras do português do século 16, como “koppu”, de “copo”, e “karuta”, de “carta”.

E de onde vem o “obrigado”? O verbo latino “obligare” tinha o sentido concreto de “ligar em volta, ligar moralmente”. As obrigações são como elos materiais entre quem fez e quem recebeu um favor, entre as pessoas e os deuses, entre as pessoas e as instituições. Certos autores dizem que é da mesma base que vem a “religião”, um vínculo com as divindades.

O professor português António Nóvoa fala sobre os três níveis de agradecimento listados no “Tratado da gratidão” de São Tomás de Aquino: o superficial, do reconhecimento intelectual; o intermediário, de dar graças a alguém pelo que fez; e o mais profundo, em que se cria um vínculo. O primeiro nível seria traduzido, para Nóvoa, nas formas inglesa e alemã de agradecer: “danke” e “thank you”, que remontam ao pensar. O segundo apareceria nas formas francesa, espanhola e italiana: “merci”, “gracias”, “grazie”. E aquele nível mais profundo seria próprio da língua portuguesa: “obrigado”. Agradecemos como ninguém: nos vinculamos e vivemos endividados.

Sofia Mariutti
Poeta e tradutora

Repórter Ceará – Nexo Jornal

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