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Quando a ingratidão ousa dar lições de lealdade

É na tempestade, dizem, que se conhece um bom marinheiro. E quando a tempestade envolve as seduções do poder, mais fácil ainda é descobrir a verdadeira natureza das pessoas. Se há algo que três décadas de rotineiro lidar com as vicissitudes políticas me ensinou foi a não mais me surpreender com a vulnerabilidade do caráter humano.

O Brasil atravessa a procela das águas turbulentas e muitas máscaras tem indo ao chão. Também no Ceará, com a divisão eleitoral recente da aliança partidária que dá sustentação ao governo Camilo-Izolda, a têmpera de muitos enfrenta seu teste de coerência e lealdade. Diz-se que “trair e coçar é só começar”. Na política, essa coceira não passa.

Tais reflexões me vêm agora quando, estupefato, li uma nota emitida pelo vice-prefeito de Fortaleza, Élcio Batista, em que cobra da governadora Izolda Cela lealdade canina a decisões controvertidas de seu partido, o PDT — que nem sequer é o mesmo dele, um filiado ao PSB. Seus argumentos são de um formalismo superficial, quase tolos.

Mas não é o aspecto intelectual da nota o que mais surpreende. É a ingratidão — já que deita em nota pública lições de lealdade: Élcio emergiu na vida pública com o apoio quase paternal de Eudoro Santana, foi pessoa de confiança de Camilo, filho de Eudoro, em seu governo e indicado para a função que ora ocupa por indicação do então governador.

A nota do vice-prefeito recomenda à governadora, como alternativa à rendição, simplesmente a porta da rua: sugere que ela deva se desfiliar do PDT e buscar abrigo numa legenda que integre a composição de forças leais a Camilo Santana para que se sinta livre de quaisquer obrigações com os candidatos de seu atual partido, Ciro Gomes e Roberto Cláudio.

Um trecho da nota, porém, revela maior descompostura, ao supor, como alternativa provável da governadora, a adesão ao grupo político de apoio à candidatura do Capitão Wagner, declaradamente identificado com o maior flagelo político dos últimos 37 anos: o presidente Jair Bolsonaro, que edificou seu poder sobre os piores valores humanos.

Repare: ele está se referindo à mulher que liderou o maior programa de Educação do Ceará, colaboradora de um grupo político progressista e qualificado, esposa de um militante de esquerda respeitado em sua terra e mãe de jovens cidadãos educados sob os melhores valores morais e intelectuais. Não é assim que se esfola um bode, rapaz.

Nós, democratas sinceros, precisamos, nessa quadra difícil da vida nacional, enfrentar com dignidade a aspereza do que ora nos separa sem perder de vista tudo aquilo que nos uniu nos 21 anos em que lutamos para reestabelecer a democracia e nesses outros 37 em que ainda tentamos colocá-la a salvo de aventuras temerárias.

A julgar pelo manejo do leme, Élcio Batista não é, como Camilo Santana supunha (tanto quanto eu até hoje), marujo a quem se deva confiar travessias incertas. Avisem a ele que eleições são períodos breves e que, logo mais e muito antes do que ele imagina, haveremos de habitar novamente trincheiras comuns e compartilhar objetivos afins.

Aguarda-se, com boa vontade, a temperança das retratações.

Ricardo Alcântara
Escritor e publicitário

(Foto: Reprodução/Tapis Rouge)

1 comentário.

  1. O que estar acontecendo no Brasil? Loucuras atrás de loucuras. Querem culpar a vitima da agressão politica. Todo poder emana do povo e este povo não é bobo. Ciro implodiu uma aliança de décadas, sairá muito menor do que em outros pleitos.

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