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VerA esperança: a história de superação de quem viveu nas ruas de Fortaleza durante 14 anos

Foi nas ruas, segundo Vera, que ela aprendeu a partilhar e a amar o próximo, pois na rua não há espaço para egoísmo

Foto: Zé Rosa Filho/Ilustração: Diogo Braga

“Eu escolhi a rua”. É isso que disse Vera Lucia, de 57 anos, uma professora de matemática de escola particular de Fortaleza que deixou sua profissão para morar nas ruas, onde passou 14 anos. Há cerca de um ano ela deixou as ruas. A história de superação foi revelada pela Defensoria Pública do Estado do Ceará.

“Eu escolhi a rua. Trabalhava em uma grande escola da capital, era professora de matemática do Ensino Médio e chegou um momento que eu não quis mais fazer nada daquilo. Fui e não consegui mais sair”, relembra. Ela que já por tantas vezes recontou sua história nos corredores da Defensoria, neste um ano da nova ocupação, não fala com rancor, vergonha e também não com orgulho. “Foi o que foi”.

Déborah Duarte, autora do texto completo que relata a história da fortalezense, destaca que Vera tem consciência de que abandonou sua vida anterior e se entregou ao desconhecido das ruas. Mas o que parecia ser uma escolha livre, se transformou em armadilha que não combina com esse livre arbítrio: a rua se tornou sua casa, sua rotina, sua realidade e da qual dificilmente poderia sair.

“Não é só a droga, não é só o álcool, a própria rua é o pior vício. Abandonei tudo, o próprio colégio chegou a ir atrás de mim, mas não conseguiram me tirar. Eles foram até com psiquiatra achando que eu tinha tido algum tipo de surto e não era nada disso, era apenas uma escolha minha. E olhando agora para o que passou eu digo pra você que nunca me arrependi de ter vivido lá, porque lá foi onde eu também aprendi muitas coisas boas”, relata Vera.

Foi nas ruas, segundo Vera, que ela aprendeu a partilhar e a amar o próximo, pois na rua não há espaço para egoísmo.

“Na rua ninguém sabe o que é egoísmo, tudo que você tem é dividido, você aprende a partilhar, você aprende a amar o próximo. Isso eu aprendi na rua. Coisa que na minha casa eu não sabia o que era. Dando aula, inclusive, em um colégio cristão, eu não sabia. Na rua ninguém tem como ser egoísta, porque estão todos no mesmo barco, todos na mesma situação. Então você consegue enxergar o outro, quando não se tem nada”.

Apesar dessa vivência, Vera viu que todo dia era uma repetição da mesma angústia e a ideia de sair por iniciativa própria parecia impossível. “Eu acredito que todos que estão lá têm esse mesmo pensamento: é impossível sair dali, porque ninguém nos olha. A gente se torna invisível, quando diz que é excluída é excluída mesmo. Uma total indiferença”.

Até que um dia, em um momento de desespero, ela fez uma oração simples. “Eu deitei no banco, olhei pra aquele céu e disse: Deus, se tu existe, rapaz, me tira daqui”. E no dia seguinte, sua prece foi respondida: “Eu estava pedindo comida na Estação das Artes, tinha ido em todas as mesas e a gente quando está com fome não desiste, vai até o último. Foi quando vi uma mesa com uma família e pedi comida. A mulher olhou pra mim, pagou a comida e eu fui dividir com os outros moradores de rua. Voltei e começamos a conversar. Ela me ouviu, me deu atenção. Talvez ela enxergou em mim algo que durante todos esses 14 anos de rua ninguém enxergou. Eu acredito que ela viu algo de bom em mim”, diz.

A mulher era Maria Tereza. A partir do momento em que conversaram, Vera e Tereza criaram um vínculo afetivo. Segundo Vera, “ela me enxergou, me resgatou da rua e me acolheu em sua vida. Deus fez com que essa mulher me visse com um olhar bem diferente de tudo. Enxergou o belo em mim. E é esse belo que ela vê até hoje […] A Tereza é uma mãe pra mim, me levou pra vida dela e hoje eu faço parte da vida da Tereza”.

Vera, então, buscou ajuda para conseguir um emprego e teve sua dignidade resgatada pela então defensora geral, Elizabeth Chagas e a secretária executiva Flávia Andrade. “Eu vi o povo da Defensoria em uma ação na Praça do Ferreira. De pronto, pedi logo um trabalho. Depois fiquei sabendo que as defensoras foram várias vezes na praça atrás de mim [Flávia e Elizabeth fizeram várias incursões atrás dela para dar oportunidade]. Eu acho que a caridade é a maior virtude divina de um ser humano. Não é todo mundo que tem. E para você ter essa virtude, você tem que ter um olhar diferente de tudo nessa vida. Então, foram essas pessoas que apareceram na minha vida que tiveram um olhar diferente. Diferente de qualquer ser humano”.

Desde 2023, Vera tem um emprego na sede da Defensoria em Fortaleza.

Vera sabe que a transição da rua não é apenas uma mudança de endereço, mas uma jornada. As memórias da rua permanecem vivas e os desafios ainda são cotidianos. “Depois que eu saí, eu não voltei mais, nem pra visitar os meninos, porque é muito recente. Só tem um ano que saí da rua. Eu tenho medo de ir e não voltar, porque ali é um encontro. Não vou dizer que tenho amigos, mas a gente se reconhece. Então, ainda não é o momento. No futuro, quem sabe, eu ainda chegue lá pra visitar, pra que eles me vejam, mostrar pra eles que têm pessoas que são capazes de amar, que eles não percam a esperança. Assim como olharam pra mim, pode ser que tenham pessoas que também possam olhar para eles”, complementa.

Com informações de Déborah Duarte/Defensoria Pública do Estado do Ceará

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