O filho de um jovem casal de refugiados dá sinais que vai vir ao mundo enquanto seus pais fogem de sua terra natal por conta da intolerância e perseguição de bárbaros, cruéis e tirânicos mandatários. Sem rumo e destino certos, entre terras desconhecidas marcadas pelo individualismo, a criança nasce cercada apenas pelo amor e zelo de seus pais. Quando adicionamos alguns elementos -a mãe, Maria, o pai, José, a manjedoura, o rei Herodes- fica fácil entender que estamos falando da história do Cristo salvador, mas todos os dias, nesses últimos 2024 anos desde o nascimento de Jesus de Nazaré, centenas de outras crianças têm suas vidas cruzadas com fatos semelhantes.
Jesus foi um refugiado. Sua vida dependia de uma mudança forçada de seus pais em razão do extermínio promovido por Herodes. Quantas outras meninas e meninos têm destinos semelhantes de fuga, algumas com a morte as abreviando. Em um mundo onde os medos imperam, o homem -um ser tão indefeso, frágil e, ao mesmo tempo, violento- fecha os olhos, tapa os ouvidos e cruza os braços para seus semelhantes. É certo que a própria religião -ou pelo menos seus “chefes”- interpretam seus livros sagrados da forma mais conveniente e, de certo modo, coadunam com os temores mundanos, mas nem mesmo a mais equivocada das interpretações pode esconder a verdadeira mensagem passada pelo exemplo do menino nascido na manjedoura: o amor ao próximo.
Após a segunda guerra mundial e mesmo no período da guerra fria, havia uma certa interpretação que o mundo caminhava para uma globalização, uma integralização. Fronteiras mais abertas, países mais acolhedores, políticas de inclusão mais fortes e uma busca pela redução das desigualdades. Toda essa visão otimista passou a ruir após as sucessivas crises promovidas pela insustentabilidade social do capitalismo -e essa ‘caixa de pandora’, muito além de problemas financeiros, despertou os males da humanidade. Uma onda violentíssima de xenofobia, racismo, nacionalismo/ultranacionalismo exacerbado promoveu a ascensão meteórica de uma nova e destrutiva extrema-direita que busca, retroalimentando os medos do homem, separar, exaltar o individualismo, o poder do dinheiro, usando em muitos casos como no Brasil, da retórica da “fé”.
A residência da hipocrisia é a fala do “Deus acima de todos”, e não mais no meio de nós. O signo do hipócrita é a ida quase missionária ao culto, a missa, o esbravejo da palavra da bíblia, mas a cegueira para seu semelhante que passa fome na rua, ou da implicância com a mãe de família pobre que recebe Bolsa Família para sustentar os filhos. O espelho da dissimulação é a defesa de ‘muros’ e do fechamento de fronteiras aos refugiados de guerras promovidas por seus próprios países na sanha gananciosa por dinheiro. Se Jesus nascesse hoje, teria de ver seus pais novamente fugirem da perseguição de bárbaros, cruéis e tirânicos mandatários -esses porém não seriam mais Herodes e seus seguidores.
Cristo, se voltasse à Terra pelo mediterrâneo, teria de escapar dos bombardeios em Gaza feitos pelo estado ilegítimo e genocida de Israel. Se nascesse entre os migrantes senegaleses rumo a Europa, enfrentaria a ira e preconceito daquele povo contra os refugiados e imigrantes africanos. Se nascesse em uma família “ilegal” nos Estados Unidos, seria separado à força de suas pais, preso em jaulas com outras crianças e deportado por políticos com cara de laranja azeda. É triste pensar que em 2024 anos, não aprendemos quase nada e, se retrocedemos, foi com ajuda da distorção da fé, tão surrupiada por falsos profetas. É mais triste ainda pensar em como a história de Jesus, tão reverberada por bocas religiosas, é esquecida quando convém.