Home 1 Minuto com Sérgio Machado Leis de Incentivo à Cultura: entre o fomento e a responsabilidade social

Leis de Incentivo à Cultura: entre o fomento e a responsabilidade social

As leis de incentivo à cultura são conquistas importantes, mas sua eficácia depende de responsabilidade, planejamento, fiscalização e, sobretudo, vontade real de transformar o ambiente cultural em instrumento de cidadania

Foto: Arquivo/Fundação Canudos/SMC

Nos últimos anos, o Brasil viu crescer a implementação de políticas públicas voltadas ao setor cultural, com destaque para leis de incentivo como a Lei Rouanet e, mais recentemente, a Lei Paulo Gustavo. Essas iniciativas representam não apenas mecanismos de financiamento, mas também o reconhecimento do papel estratégico da cultura no desenvolvimento humano, social e econômico. No entanto, é preciso ir além da euforia dos editais: urge um debate honesto sobre a efetividade desses investimentos e a responsabilidade de seus beneficiários.

A Lei Rouanet, em vigor desde 1991, abriu caminho para que empresas e cidadãos destinem parte do imposto de renda a projetos culturais previamente aprovados. Seu modelo, centrado na captação privada, transformou-se em um divisor de águas no financiamento cultural, mas também expôs desigualdades regionais e favorecimentos históricos aos grandes centros e produtores já consolidados.

A chegada da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) marca um novo momento: com mais de R$ 3,8 bilhões destinados ao setor, a lei garante o repasse direto de recursos do Fundo Nacional de Cultura para estados e municípios, priorizando o audiovisual e outras áreas artísticas. É uma política de emergência com vocação estruturante, pensada para descentralizar o fomento e democratizar o acesso aos recursos públicos. No entanto, o que deveria representar um novo ciclo de fortalecimento da cultura brasileira pode, se mal executado, tornar-se apenas mais uma política de repasse sem impacto real.

A crítica que se impõe não é contra a existência dessas leis – que são vitais – mas contra a forma como muitos projetos são concebidos, executados e, sobretudo, acompanhados. É comum vermos propostas premiadas que não se materializam de forma efetiva, transformando-se em produtos arquivados, desconectados da realidade social e cultural que deveriam impactar. Filmes que não são exibidos; publicações que não chegam às bibliotecas; cursos que não dialogam com os agentes culturais locais; eventos sem continuidade ou retorno pedagógico. O que era para ser instrumento de transformação torna-se, muitas vezes, mero protocolo burocrático de execução superficial.

Esse cenário evidencia a necessidade de um acompanhamento mais criterioso por parte dos órgãos gestores e da própria sociedade civil. É preciso exigir mais que a entrega de relatórios financeiros: deve-se cobrar qualidade, relevância, exibição pública, articulação com os equipamentos culturais e compromisso educativo. Sem isso, os projetos perdem o sentido e os recursos públicos deixam de cumprir sua finalidade constitucional.

Outro ponto que não pode ser ignorado é a subutilização dos equipamentos culturais nos territórios. Salas de cinema, auditórios, rádios comunitárias, TVs regionais, centros culturais e escolas públicas poderiam (e deveriam) ser protagonistas na implementação desses projetos. No entanto, são frequentemente ignorados ou tratados como meros espaços de apoio. É fundamental que editais incentivem e, quando possível, exijam a integração com essas estruturas já existentes, fortalecendo redes culturais locais e promovendo resultados duradouros.

Além disso, os veículos de comunicação locais – como rádios, TVs e plataformas digitais regionais – devem ser parceiros estratégicos, não apenas na divulgação, mas na construção de uma cultura participativa e acessível. É preciso reconhecer a comunicação como vetor de cultura e não apenas como canal de publicidade.

Por fim, cabe aos proponentes a consciência de que participar de uma política pública de cultura é assumir um pacto com a sociedade. Não se trata de receber um prêmio, mas de desempenhar um papel público, com metas, responsabilidades e compromisso social. A cultura financiada com recursos públicos deve ser acessível, formativa, provocadora e viva. Deve ir às ruas, às escolas, às comunidades. Deve dialogar com o povo e com seu tempo.

As leis de incentivo à cultura são conquistas importantes, mas sua eficácia depende de responsabilidade, planejamento, fiscalização e, sobretudo, vontade real de transformar o ambiente cultural em instrumento de cidadania. Se isso não for prioridade, corremos o risco de manter uma indústria de projetos sem alma – e de continuar empilhando, nas gavetas da burocracia, aquilo que deveria estar nas mãos do povo: a cultura.

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