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Dona Guidinha do Poço: Além-mar

Em Portugal, essa Guidinha talvez seja lida como mera figura literária, mas aqui ela é vizinha antiga, personagem de esquina, nome murmurado em conversas familiares. A edição estrangeira dá outra espessura ao mito: devolve-nos a certeza de que a literatura tem fronteiras móveis, mas o coração da narrativa continua a pulsar no sertão

Foto: Bruno Paulino/Arquivo pessoal

Recebi, tempos atrás, de um amigo que andou por Lisboa, um presente raro: a edição portuguesa de Dona Guidinha do Poço, da editora Sistema Solar (2016). O livro de Oliveira Paiva atravessou o Atlântico, embalado no silêncio das livrarias do Chiado, para repousar na minha biblioteca em Quixeramobim. Ao abrir o volume, senti um ar estrangeiro naquilo que me era tão íntimo: a capa sóbria, o português “com ares” de outra ortografia, a diagramação cuidadosa que convida o leitor a entrar devagar, quase em reverência.

Guidinha me acompanha desde sempre, não como simples personagem, mas como sombra da nossa terra, como cicatriz inscrita na memória local. “A mulher do Quixeramobim que mandou matar o marido…”. Marica Lessa – figura real cujo drama inspirou o romance – que viveu aqui, de carne e osso, converteu-se em romance, em julgamento, em lenda. E agora retorna em papel lisboeta, um exílio involuntário que me chega pelas mãos de um amigo. O livro, nascido do sertão oitocentista, reaparece em edição europeia como se quisesse comprovar que nossa história também ressoa fora daqui.

Folheando as páginas, reconheço os traços do naturalismo de Oliveira Paiva, mas o que me prende é a voz subterrânea que atravessa os séculos: a de uma mulher acusada, julgada, condenada. Em Portugal, essa Guidinha talvez seja lida como mera figura literária, mas aqui ela é vizinha antiga, personagem de esquina, nome murmurado em conversas familiares. A edição estrangeira dá outra espessura ao mito: devolve-nos a certeza de que a literatura tem fronteiras móveis, mas o coração da narrativa continua a pulsar no sertão. Lembrei-me do amigo escritor Nilto Maciel, que dizia que eu deveria ler Dona Guidinha do Poço como um romance policial sertanejo, testando as possibilidades infinitas de leitura.

Oliveira Paiva, autor desse romance singular, teve destino breve e quase esquecido: morreu jovem, aos 35 anos, deixando poucas obras publicadas. É curioso pensar que, por muito tempo, seu trabalho permaneceu em silêncio nas prateleiras brasileiras, sem o devido reconhecimento, até que estudiosos e editores lhe devolveram a visibilidade. Que ironia — um romance nascido do sertão, esquecido em sua pátria, reaparece com dignidade em edição portuguesa, como se fosse preciso o olhar estrangeiro para nos lembrar do valor que sempre esteve aqui.

Penso sobre a persistência da memória: os lugares e personagens se transformaram, desapareceram, mas de algum modo permanecem. A palavra sobrevive ao tempo implacável. Assim também Guidinha: ora Marica, ora Dona Margarida, ora personagem reinventada nos folhetos de cordel e na oralidade. Ler essa edição é como ver Quixeramobim refletida num espelho distante: tudo parece igual e, ao mesmo tempo, mudado.

No fim, a edição portuguesa que ganhei de presente é mais que um livro; é uma prova de amizade e também uma convocação. Como se o gesto do amigo dissesse: “a tua história viaja”. E eu, ao segurar esse volume “estrangeiro”, descubro que Guidinha do Poço — a Marica Lessa — não é apenas memória local, mas parte do romance maior que o Brasil ainda escreve sobre sua gente. Como um espelho distante, essa edição devolve à nossa terra um reflexo inesperado: o sertão que parecia encerrado em silêncio volta a falar, e sua voz atravessa fronteiras, insistindo em permanecer.

Bruno Paulino
Poeta e escritor

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