José Datrino, eis o homem. Era um pequeno empresário de transporte de cargas na periferia do Rio de Janeiro. No entanto, um acontecimento trágico o tocou como um chamamento mágico. No dia 17 de dezembro de 1961, um incêndio ocorrido em Niterói, no Gran Circus Norte-Americano, ceifou a vida de mais de quinhentas pessoas, a maioria crianças. Sensibilizado, Datrino pegou um de seus caminhões e foi para o local do incêndio. Ali plantou horta e jardim sobre as cinzas do circo. Virou consolador voluntário dos familiares das vítimas. E adotou o fenótipo clássico de um Profeta: cabelos compridos, barba longa e túnica branca. Carregava um estandarte na mão, com frases como “gentileza gera gentileza”. Resolveu despir-se do patrimônio material e voltar-se apenas para o espiritual. Transformou-se em mensageiro andarilho pelos ônibus, praças e barcas do Rio para Niterói.
Virou inspiração para o Dia da Gentileza, comemorado em 13 de novembro. Trata-se de um desses dias que nascem para nos lembrar do que esquecemos de ser. O Dia da Gentileza é um desses marcos temporais que nos convoca a pausar diante do espelho da humanidade e reconhecer, talvez com surpresa, que a delicadeza não é fraqueza — é a mais refinada fortaleza.
A gentileza habita um território peculiar: é simultaneamente endógena e exógena, íntima e política, pessoal e coletiva. Aristóteles nos falava da “philia” (amizade) como uma virtude essencial para a vida em sociedade. Ao dar relevo a essa “amizade cívica que sustenta a polis” (cidade, comunidade), o filósofo intuía que a convivência harmoniosa não se constrói apenas com leis, mas com gestos. Pequenos atos de consideração que, como sementes, germinam em jardins de confiança mútua.
No tribunal da vida cotidiana, onde todos somos réus e juízes de nossas próprias escolhas, a gentileza emerge como uma jurisprudência não escrita. Ela não está nos códigos, mas deveria estar. Imaginem um Direito temperado pela compaixão, onde a Justiça não apenas pesa, mas também acolhe?! Onde o rigor da legislação se encontra com a sabedoria do coração?!
O pensador francês Emmanuel Levinas nos ensinou que o rosto do outro é um apelo ético irrecusável. No âmbito jurídico, isso se traduz numa advocacia mais humana, numa magistratura que enxerga além dos autos, numa promotoria que defende não apenas direitos, mas dignidades. A gentileza, aqui, não é concessão — é método de ação.
Na arena política, onde as paixões frequentemente se travestem de razões, a gentileza assume contornos revolucionários. Não é ingenuidade; é estratégia de verdade. Gandhi sabia disso quando transformou a não-violência em arma de transformação social na Índia. Mandela compreendeu isso ao escolher a reconciliação ao invés da vingança na África do Sul.
A política da gentileza não é a política do consenso fácil, mas a do diálogo possível. É reconhecer no adversário não um inimigo a ser aniquilado, mas um interlocutor com quem se pode, eventualmente, construir pontes. Como diria Hannah Arendt, é preservar o espaço público como lugar de encontro, não de guerra.
A gentileza é, fundamentalmente, uma epistemologia — uma forma de conhecer o mundo que privilegia a conexão sobre a separação. Ela nos ensina que a verdadeira força não está em impor pra valer, mas em sinceramente compreender; não em vencer, mas em convencer; não em dominar com furor, mas em servir com amor.
Numa sociedade crescentemente polarizada, onde o grito se confunde com argumento e a agressividade com autenticidade, a gentileza surge como uma operosa ciência, uma estrutura fortificada de resistência. É a coragem de permanecer humano quando tudo conspira, à contramão, para nos tornarmos máquinas de indignação.
No fim, a gentileza não é apenas um valor ou alegoria. É uma aurora e uma profecia. José Datrino intuiu isso com leveza. Por isso foi o nosso Profeta Gentileza.




