Diferentes concepções e entendimentos acerca da chamada “luta de classes” existem há séculos em todo o mundo, mas muito provavelmente as melhores e mais difundidas conceituações acerca do assunto ainda são aquelas compartilhadas por Karl Marx e reverberadas por seus estudiosos desde então. É curioso, porém, como algumas pessoas, por seus interesses próprios ou de grupos específicos, tentam difundir a ideia de que essa “batalha” entre os mais ricos e os mais pobres é um conceito ultrapassado e, portanto, não caberia em análises de nosso tempo. Acontece que toda essa falácia cai por terra sempre que qualquer privilégio dos mais ricos é minimamente ameaçado, e isso se provou verdade nos últimos dias no Brasil.
Após meses de uma pressão exacerbada sobre o governo federal, realizada por diferentes agentes políticos e econômicos, e verbalizada por toda grande mídia, exigindo uma política de ‘corte de gastos’ para buscar um superávit primário nas contas públicas, a equipe econômica e a presidência da República chegaram a um consenso sobre um texto. A especulação do mercado financeiro era que o governo cortaria de programas sociais, como Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, BPC. Mesmo com o presidente Lula reafirmando que não cortaria dos mais pobres e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, demonstrando que o problema das contas públicas residia em outros estratos, o ‘mercado’ insistia que o saneamento deveria recair, como de praxe, sobre aqueles que mais precisam.
Em pronunciamento feito em cadeia nacional de rádio e televisão no último dia 27, o ministro apresentou um resumo das ações que o governo tomaria, reafirmando que os benefícios sairiam “ilesos” e que haveriam mudanças no Imposto de Renda e em privilégios das Forças Armadas. Horas antes, as informações de sua fala vazam, e o mercado enlouquece com a possibilidade do governo mudar a regra do Imposto de Renda, isentando quem ganha até R$ 5 mil mensais, e aumentando as alíquotas a partir de quem ganha mais de R$ 50 mil. A especulação financeira fez o dólar disparar, enquanto o Banco Central autônomo, presidido por Roberto Campos Neto -indicado por Bolsonaro- não fez nada para preservar o valor do real.
A queixa do tal ‘mercado’ (leia-se especuladores financeiros, rentistas, banqueiros, investidores de ações que lucram com juros sobre os mais pobres), a verborragia atacada de parte dos veículos tradicionais de mídia, e a rápida resposta de membros do “centrão político” do Congresso contra o texto e as mudanças do I.R. escancararam a hipocrisia ou total falta de tato social daqueles que alegam que “luta de classes” é um conceito ultrapassado, que não serve à contemporaneidade. Nas redes sociais, uma cisão foi perceptível -até mesmo entre comentaristas de tais veículos tradicionais. Semanas após a discussão do fim da escala 6×1 estourar as disputas entre trabalhadores e exploradores, a possibilidade da quebra de alguns (ainda muito poucos) privilégios da classe “de cima” reacendeu de vez essa luta no país.
Pela primeira vez -e falamos isso com uma tristeza até- os sempre polêmicos ‘cortes’ não recaem apenas sobre quem está na base da pirâmide. Como sempre ressalta Haddad e Lula, se querem tanto um “arrocho”, que ele seja distribuído proporcionalmente entre todos: de forma mais branda entre quem mais precisa, e mais incisiva sobre aqueles que sempre se comportaram como sanguessugas do Estado e, por conta disso e da exploração dos excluídos, acumularam riquezas incalculáveis. É preciso, agora, pressão social sobre o Congresso e demais atores políticos para que não haja retrocesso e que, a cada vez que um novo ‘corte’ seja bradado entre as elites, ele seja feito derrubando privilégios dos abastados e não mais direitos dos necessitados.