Senhoras e Senhores: no dia de hoje, como catedrais a céu aberto, os campos santos cumprimentam a aurora. O esparramado perfume das flores, a espiral das chamas das velas aquecendo o céu e o coral emudecido das preces formam uma atmosfera ritualística singular. E o que são os rituais, senão o inextinguível idioma da alma tentando expressar o inexprimível?
Ah, nesta data, o calendário nos convida a passear por um dos jardins mais solenes e, ao mesmo tempo, mais férteis do pensamento humano: a contemplação do desencarne. Elevemos o estúdio mais sagrado da nossa consciência para dar vazão ao céu da mais silenciosa eloquência: é o Dia de Finados.
Cada cultura desenha sua própria arquitetura para lidar com a impermanência.
O professor Sogyal Rinpoche, mestre budista que nasceu no Tibet e é um dos pioneiros na promoção do diálogo entre a Ciência e a Espiritualidade, leciona que “todas as tradições espirituais do mundo, inclusive, é claro, o cristianismo, dizem explicitamente que a morte não é um fim. Todas falam em algum tipo de vida futura, o que infunde em nossa vida atual um sentido sagrado. Mas, não obstante esses ensinamentos, a sociedade moderna é um deserto espiritual em que a maioria imagina que esta vida é tudo que existe. Sem qualquer fé autêntica numa vida futura, a maioria das pessoas vive toda a sua existência destituída de um sentido supremo”.
Os estoicos, por sua vez, nos legaram o conceito de memento mori — “lembre-se de que você é mortal”. Não como um convite à melancolia, mas como um chamado à ação virtuosa. Saber que o tempo é escasso nos impele a amar com mais intensidade, a perdoar com mais presteza e a buscar o conhecimento com um ardor que a eternidade jamais conheceria. Cada nascer do sol se torna um milagre, e cada encontro, uma oportunidade sagrada. A morte, essa sombra que nos acompanha, é o que nos faz buscar a luz com tanto afinco.
No México, o Día de los Muertos (Dia dos Mortos) é uma festa de cores e sabores, uma celebração da continuidade, aonde os mortos retornam para dançar com os vivos. Em outras tradições, prevalece a introspecção silente, um solene respeito pela cerimônia da passagem. O impacto emocional dessa celebração de Finados é, portanto, um convite universal à introspecção, um momento para reavaliar nossas prioridades e a qualidade de nossas relações. Caminhemos juntos, pois, por uma vereda de reflexão.
Ocorreu-me estes dias que, sob a latência do território do direito, é possível verificarmos um tipo de morte diferente: a morte civil. Esta se opera quando um agente público sofre, por exemplo, uma condenação por ato de improbidade. Esse tipo de condenação atrai, dentre outros consectários, a suspensão dos direitos políticos (o impedimento de votar e ser votado), a indisponibilidade dos bens, a proibição de contratar com o poder público e a nódoa pejorativa de “ficha suja”. Equivale a uma extinção temporária da pessoa. Porém, sua relação com a morte natural vem da irreversibilidade que causa no pergaminho da trajetória. Assemelha-se a arrancarem páginas inteiras do livro existencial de uma pessoa, deixando capítulos incompletos e histórias pela metade. Na prática, é como se a vida política daquela pessoa fosse “sepultada”. Essa morte peculiar — que não conhece túmulo nem luto público — ressoa, no mais recôndito das consciências, como um poderoso e ensurdecedor sino sem som.
Portanto, lembremos da importância de zelar não só pela memória de quem partiu, mas também pela saúde e pela ética na nossa vida pública. Afinal, a ética é o que mantém viva a esperança de um povo, revolve o estrume dos nossos sonhos e fertiliza o solo da sociedade para que vicejem as sementes de uma integridade renovada, onde cada ato seja um verso no poema coletivo da justiça.




