Milton Nascimento e Fernando Brant, em Canção da América, ainda hoje fazem chorar e arrepiar quem conserva empatia e alguma capacidade de sentir. Não é pouco. A música também nos devolve a um momento histórico duro e simbólico, a partida de Tancredo Neves, presidente eleito que não tomou posse, em meio a um país que clamava pela abertura democrática e por um futuro menos sufocado.
Canção da América tornou-se um hino silencioso à amizade que resiste ao tempo e à distância, à presença que permanece mesmo quando o corpo falta. Fala de memória, afeto, lealdade e encontro. Coisas simples, profundas e aparentemente perigosas para certos tempos.
Pois bem. Recentemente, numa peça publicitária riquíssima, a atriz Fernanda Torres, convidada pelas chinelas Havaianas, sugeriu que o ano não fosse iniciado com o “pé direito”, mas com os “dois pés”. Um texto elegante, humano e simbólico.
Bastou isso para que o fanatismo religioso somado ao analfabetismo político instalado no Brasil pós-Bolsonaro enxergasse ali um ataque mortal aos seus interesses ideológicos.
Sem explicar aos seguidores o que é direita ou esquerda, promoveu-se um levante digital. Pessoas de todo o país foram chamadas a queimar as chinelas. Afinal, a marca agora seria “comunista”, igualmente a atriz. A lógica morreu antes do primeiro par ser jogado na fogueira.
Esses vigilantes da insanidade esqueceram apenas de um detalhe incômodo. As Havaianas pertencem às Alpargatas, que pertence ao Banco Itaú. Fica a pergunta que ninguém ousa responder. O Itaú também virou comunista ou só quando convém?
Beira o ridículo.
Diante disso, resta imaginar o próximo passo. Boicotar Canção da América e seu intérprete. Afinal, em um verso famoso, a música afirma “que o amigo se guarda do lado esquerdo do peito”. Pronto. Está decretado. A anatomia humana agora também é ideológica.
É muita loucura. Muito barulho. Muitos delírios. E, como de costume, ações concretas que é bom para o povo, NADA.




