Era uma vez um senador. Senador eleito por um estado arrasado, em uma pátria triste, chateada e com raiva. Era uma vez um quadriciclo. Quadriciclo vermelho, vendido a uma empresa pra trabalhar em praias de um estado bonito, colorido, alegre. O quadriciclo era vermelho, e o senador só gostava de verde e amarelo.
O senador era filho do presidente. Presidente eleito por aquela tal pátria. Tratado como um príncipe, o senador fez muitas promessas ao estado que elegeu, só não prometeu que trabalharia – e essa não-promessa ele cumpriu e cumpre muito bem. O quadriciclo, coitado, não tinha mãe, nem pai presidente. Claro, era um objeto. Foi feito pra um serviço, e nem podia escolher a quem transportar. Pobre quadriciclo vermelho.
O senador achou de bom tom passear enquanto a triste pátria chora seus lutos – quase 400 mil – suas crises e seus governantes. Achou de bom tom, pois seu papai faz a mesma coisa. O principezinho, digo, o senador, veio para o alegre estado do quadriciclo – que também já não estava mais tão alegre assim. O senador veio com a esposa, pois acha as praias do colorido estado bonitas – sim, senador, foi nessas águas que Dragão do Mar se recusou a transportar escravizados; foi nestas areias que os Tremembé encontram suas crenças; foi nesse litoral que Alencar pensou quando Iracema nasceu. São nessas bonitas praias que o quadriciclo exerce sua função, sob o pagamento de uma quantia em dinheiro ao seu dono por turistas que usufruem de seu esforço de máquina.
O senador foi além no tom: se hospedou em um belo hotel, com diárias em torno de R$ 3.500, na chateada pátria em que seus cidadãos suam durante um mês para conseguir R$ 1.100 de salário mínimo e, em tempos sombrios como agora, tem de ouvir que o auxílio emergencial deve ser de R$ 150,00 para não quebrar a própria pátria. Não bastasse, o senador – já falei que é filho do presidente? – usa a Força Aérea como companhia de jatinhos particulares. Que bom e bonito é ser senador e filho do presidente – e isso sem eu dizer que o papai dele mexe até na Polícia Federal para proteger seu filhinho. Merecia uma novela, quem sabe ‘Amor de pai’? E o quadriciclo estava lá, aguardando mais um dia de trabalho como outro qualquer.
O senador se preparou. “É hoje”, com a dada liberdade poética, é o que diria. Vamos a praia. Taíba, belíssima. Vamos contratar um drone pra filmar? Óbvio. Capturar aquele momento especial, naquele passeio caloroso na praia em um sábado, dia 17 – que número cabalístico, hein?, enquanto a pátria passava de seus 370 mil mortos e se retorcia com a “falta no estômago”. Vamos alugar um veículo? Sim, sim. Mas qual? Um buggy? Não! Uma Troller, em comemoração ao encerramento da Ford no Brasil? Nãão. Um quadriciclo? Perfeito. A liberdade, o vento na cara. Qual cor tem? Vermelho? Poxa… Tudo bem. E lá se vai o quadriciclo, sem poder escolher levar ou não o senador.
O senador é radical, viu?! Muitas manobras na areia quase deserta. O quadriciclo só fazia o seu trabalho. Olha lá, o drone, o sol em um laranja lindo – que muito me lembrou o Queiroz – e a digníssima esposa do senador. Uma ideia surge, “vou circular ela, para o drone fazer a mais bela imagem”, aqui a liberdade poética age novamente, mas a ideia no senador também agiu. E vamos para a curva, quadriciclo. Começa, mas está rápida, né? A essa velocidade… cuidado, senador, não sei se tenho estabilidade e imunidade parlamentar como o senhor. Não tinha. Na verdade, naquele momento nenhum dos dois teve imunidade. O senador, que achou de bom tom essas férias, voa como um Ícaro, e queima suas asas rápido demais. O pobre quadriciclo… tomba, mas se pudesse pensar, o teria feito: “Poderia ser proposital, afinal é muito o peso que carrego, de um parlamentar que não trabalha, que gasta o dinheiro do contribuinte em farra, que nega uma pandemia se divertindo sobre milhares de corpos sem vida”. Mas como é um objeto inanimado, não fez isso. Apenas ficou virado, esperando a ação do homem.
A ironia? O senador foi atendido e levado para a emergência de uma UPA, do SUS que ele, seus irmãos e seu pai sempre tentaram sucatear. Mas não se preocupe, o quadriciclo passa muito bem e deve se recuperar logo. Tomara que a triste pátria também.
Uma ótima semana e bom trabalho, classe trabalhadora.
Este texto contém ironias. A ideia de tema partiu da sugestão da companheira Lorena Débora. Esta coluna tem a pretensão de ser colaborativa. Se crê que algum tema da política e dos acasos sociais são de grande relevância, entre em contato, terei o prazer de discuti-los com você e, a depender da conversa, virar assunto de nosso espaço.
Foto: Cristiano Mariz/VEJA
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