Conto 31 anos de advocacia. É uma vida inteira dedicada a decifrar o emaranhado das leis e a complexidade da alma humana. Milito nas áreas cíveis e criminais, mas foi na trincheira penal que a realidade se impôs de forma mais crua. Aprendi, na poeira dos fóruns e no silêncio das celas, uma verdade quase pétrea: quando um cidadão fere o ordenamento jurídico penal, todas as portas se fecham contra ele.
A sociedade, rápida no julgamento e implacável na sentença, lança sobre o acusado um peso que antecede qualquer decisão judicial. A culpabilidade é presumida, a punibilidade é desejada.
E nesse momento de abandono, quando o indivíduo se torna apenas um número de processo sob os olhos acusadores da multidão, somente uma porta se mantém aberta: a do escritório do advogado criminalista.
É ali, naquele refúgio, que o Estado Democrático de Direito respira. Nossa paridade de armas não é um favor, mas um pilar cravado no artigo 5º da nossa Carta Política Magna, que garante o contraditório e a ampla defesa. Somos a última voz daquele que já não pode falar por si.
Pois bem. Até aqui, nada de novo, a não ser a rotina de uma profissão que escolheu defender o homem, e não o crime. O que assusta é a estarrecedora inovação que o Congresso Nacional deseja, agora, nos impor: a oficialização de que seremos dois tipos de gente. De um lado, os cidadãos comuns, que podem e devem ser alcançados pela Lei; do outro, uma nova casta, doravante, intocável.
Falo da infame “PEC da Blindagem”, que a sabedoria popular já apelidou, com precisão cirúrgica, de “PEC da Bandidagem”. É um disparate, um acinte, uma bofetada na face da República. A proposta rasga o princípio mais elementar da Justiça – o de que todos são iguais perante a lei – para criar uma cidadania de primeira classe, imune e protegida nos palácios de Brasília.
O mais absurdo, e talvez o mais desolador, é ver que gente decente, parlamentares com biografias que julgávamos limpas, estão apoiando essa inconsequência. Homens e mulheres que deveriam ser os guardiões da Constituição se apressam em mutilá-la para garantir privilégios.
E como se não bastasse este assalto interno à isonomia, ainda somos obrigados a assistir, atônitos, a cenas de um surrealismo atroz, onde figuras como Trump e Eduardo Bolsonaro se sentem à vontade para dizer como o nosso Supremo Tribunal Federal (STF) deve condenar ou absolver. A nossa soberania jurídica, conquistada a duras penas, sendo tratada como um quintal de interesses alheios.
Resta a pergunta que ecoa na consciência dos que ainda prezam pela Justiça: para quem, afinal, servirá a lei? Se o pacto fundamental for quebrado, o que restará senão a força? A balança, pelo visto, corre o risco de pender vergonhosamente para o lado dos deuses do poder, deixando a nós, meros mortais, o peso esmagador de uma lei que já não é para todos.