Selênio e Solene Poeta:
Despeço-me de ti, querido amigo, te chamando apenas de Poeta. E escolho Poeta, ao invés de Padre, ou Profeta, porque nem todo Padre é Poeta, mas todo Poeta é um Profeta. Por isso, nessas quase nove décadas de tua partitura existencial, acima do exímio colecionador de peças raras, do notívago ecologista, do escritor de nomeada, do historiador que mesclava com maestria as pesquisas empírica e teórico-científica, reluzia o discípulo de Orfeu. Sim, o polido cavalheiro, o cerimonioso cavaleiro andante dos achados meticulosos. Nos vazios noturnos ou nos mormaços soturnos, sempre emergia, fagueira, altaneira, tua cachoeira secreta: a enigmática alma de Poeta.
Os poetas, nos ensinava o teu excelso conterrâneo Gerardo Mello Mourão, são os edificadores civilizatórios: Homero, poeta cego e genial, fundou a Grécia; o duradouro império romano nasceu da inspiração do poeta Virgílio e de um escritor que se fez general, Caio Júlio César; os poetas das profecias – Jeremias, Isaias, Ezequiel, Daniel e os Cantos do rei Davi – nos legaram o mundo judaico; o magistral poeta Maomé, senhor e soberano, erigiu a civilização mulçumana; Confúcio levantou a China e a Ásia Oriental; Dante, a Itália. Foi da epopeia de Camões, festejando as armas e os barões assinalados da ocidental praia lusitana, que nasceu Portugal. Como compreender a França sem Voltaire, Baudelaire, Lamartine e Hugo? E o Ceará sem seus poetas, renegados e esquecidos?
Se Mello Mourão fincou os marcos fronteiriços do País dos Mourões, definiste os limites dos Sertões de Crateús: “a oeste pelas silhuetas azuis da cordilheira da Ibiapaba e, ao sul, com as escarpas reluzentes e palpitantes dos contrafortes da serra da Joaninha, esparramam-se e se alargam os amplos e vastos sertões de Crateús, no formato de um grande e imenso anfiteatro florístico e numa abrangência física e majestática que lhes imprime beleza e peculiaridades próprias.”
Analisando a seiva que te moldou, concluí que duas lideranças, opostas entre si e igualmente fibrosas, foram responsáveis pela tua diversificada unidade. Teu primeiro admoestador espiritual e guru filosófico foi Dom José Tupinambá da Frota, o dignitário bispo de Sobral. A figura formal, imponente e aristocrática de Dom José te indicou a alameda perfumada da erudição. O segundo foi Dom Antonio Batista Fragoso, arrojado paraibano da Serra de Teixeira, sagrado como primeiro Bispo de Crateús. Ficaste magnetizado por Dom Fragoso, sobretudo pela sua metálica voz e firmeza de aço na defesa dos ideais da Teologia da Libertação.
Recordo tua partitura simples – nunca simplória – e tua luminária mais notória: foste um guardião de histórias, um tecelão de memórias! Teu legado permanecerá, tocha indelével, nas páginas que escreveste, alinhavadas a partir da oitiva popular e da consulta aos sebos mais preciosos.
À militância clerical unistes o pendor cultural. Constantemente te banhavas, com serena alegria, nas águas termais da melhor filosofia. Eras versado, a não poder mais, no trivium e no quadrivium das artes liberais. Surfavas por sobre as ondas tempestuosas da popular ebulição e mergulhavas nas águas profundas da erudição.
Foste um ser visceralmente cosmopolita, um cidadão do mundo, do vasto e estranho mundo. Teus anos sabáticos, na Alemanha e na Inglaterra, nunca te afastaram de tua terra. Daí desenvolveste a prodigiosa capacidade de, a cada novo dia, transformar geografia em poesia.
Como sói ocorrer aos rebentos de Orfeu, fostes arrebatado pelo magnetismo que as musas exalam. É óbvio que, nalgum momento, uma saia deve ter abalado tua íntima praia. À Fagundes Varela, te deixaste consumir pela etílica vela. Nesses delicados instantes, como uma espécie de raio, identificaste a direção sinuosa do soslaio.
Eu sei que, para ti, assim como para mim, modesto tirador de reisado, o pecado reside ao lado. Não precisas de perdão. Nasceste perdoado. Da janela da Tabacaria celeste, podes olhar o oceano profundo e, como Pessoa, proclamar: “tive em mim todos os sonhos do mundo.” Foste Poeta!
P.S. Geraldo Oliveira Lima, o Geraldinho, nascido em Ipueiras no ano da graça de 1939, foi Sacerdote, Escritor, Museólogo, Ecologista, Historiador, Pintor e Poeta. Faleceu em 03 de setembro de 2025.