Quixeramobim, nos anos que correm entre o fim da década de 1930 e o meio dos anos 1950, era mais sertão do que cidade, mais lembrança do que mapa. Ainda assim, guardava em suas entranhas um mundo inteiro: o eco dos tropeiros, o cheiro das rezas, o passo lento das procissões, o silêncio que só os trilhos abandonados das ferrovias inglesas sabem contar. Foi nesse palco, poeirento e encantado, que nasceram nossas infâncias — a de Leorne Belém, no 23 de abril de 1938, e a minha, Sabino Henrique, no 4 de abril de 1947.
Nascemos na mesma rua — a Avenida Monsenhor Salviano — quase no mesmo quarteirão, como se a geografia já nos preparasse para a amizade que viria. Nossas famílias se conheciam, partilhavam vizinhança, histórias, origens. Seu pai, Luís Cínico, homem de rosto forte e coração largo; minha tia Cecinha e meu tio afim, Lauzinho, com suas raízes galegas e seu cuidado pelos sobrinhos. E ali, entre a Matriz de Santo Antônio e os trilhos calados da velha estrada de ferro, se desenrolavam os capítulos mais doces da nossa infância.
Leorne tinha memória de aço e coração de algodão. Era ele quem me contava, já adultos, as peraltices que eu próprio esquecera: o menino que corria de calção frouxo, chorava no chão quando contrariado, era apanhado no colo pelos tios e devolvido aos cuidados dos meus pais, Geraldo e Oristéa. Eu ria das histórias contadas por ele — não como quem ouve lendas, mas como quem reencontra partes perdidas de si.
Era um cronista sem papel, Leorne. Guardava o passado como quem cultiva uma plantação de afetos. Em sua companhia, minha memória ganhava vida nova, como se ele fosse o escriba das minhas lembranças — um Euclides da Cunha das nossas Canudos pessoais, só que mais generoso e menos trágico.
Em 29 de maio, ele se foi. Partiu em Fortaleza, onde a vida moderna o alcançou, mas não o transformou. Leorne sempre foi sertão. Sertão de fala mansa, de olhar atento, de alma guardada em retratos desbotados. Sua ausência deixa em mim uma saudade que não sei dizer se é de infância, de amizade ou de mim mesmo.
Escrevo esta crônica porque preciso. Porque é preciso dar nome às dores que sentimos. Porque a amizade não morre com a morte, apenas muda de casa. E porque, se Humberto de Campos me empresta o estilo, Leorne me deu o conteúdo: ele é a história que hoje eu conto.
Fico eu, ainda vivo, escrevendo no presente. Fica ele, agora eterno, gravado na pedra da memória e na sombra fresca das árvores que ainda guardam a Monsenhor Salviano.
Obrigado, amigo.
Sabino Henrique